domingo, 24 de agosto de 2014

Escrevi este texto como presente de aniversário para minha mãe quando ela completou 78 anos. Hoje, 24 de agosto de 2014, me preparo para a derradeira despedida. Ontem ela foi ao encontro da luz depois de meses de muita dor e sofrimento que ela aguentou, quase sempre, com um sorriso no rosto. Não queria morrer, fazia planos, queria andar e sair por aí.
Algumas horas antes de perder a consciência me pediu para que, quando saísse do hospital, fôssemos a uma loja de tecido para comprar um bem colorido com muitas flores para eu fazer uma blusa pra ela, me instituiu sua costureira oficial. Prometi que faria. Não pude cumprir a promessa.

(Para minha mãe)
Ela tem 78 anos. Nasceu Gercina e virou vovó GG.
Mulher forte corajosa teve uma vida de superações. Ainda criança, aos seis anos, viu sua mãe abandonar os três filhos com o pai na fazenda da família em busca de um destino melhor. Ela, a única mulher da casa, teve que assumir sua condição desde cedo e, subindo num banquinho para alcançar as pesadas panelas, cozinhava naquele enorme fogão à lenha.
Anos depois pode ver a mãe chegar, linda num vestido de bolas, para buscar os filhos para aquele que acreditava ser o destino melhor. Foi assim que ela foi morar na cidade em companhia dos irmãos, da mãe e daquele que seria seu querido, amado e lembrado “pai”, homem escolhido pela mãe e que acolheu cada filho dela como se dele fosse.
Estudou pouco, mas aprendeu muito. Habilidosa, ajudava nas despesas familiares bordando lindos vestidos, bordou também o seu belo vestido de noiva para casar com o companheiro escolhido. Um jovem dentista recém formado dono de um porte atlético e uma bela cabeleira que foi aos poucos caindo, fio a fio e o transformando num charmoso careca.
Mudou com o marido para longe da família e enfrentou com ele as dificuldades dos primeiros anos de casada cozinhando não mais em um grande fogão á lenha, mas num pequeno fogareiro de duas bocas.
Engravidou logo e, antes de completar um ano de casada, teve sua primeira filha chamou-a Elizabeth. Pouco mais de um ano depois chegava sua segunda filha que recebeu o nome de Lourdes em agradecimento á uma graça feita por Nossa Senhora de Lourdes que cuidou para que o bebê ficasse bem depois daquela queda que valeu a ela um braço quebrado na tentativa de proteger a barriga que carregava seu segundo bebê.
Daí pra frente não parou mais de parir. O marido, italiano fogoso, não perdoava e sempre que ela dizia, na hora do amor que já tinham muitos filhos, ele argumentava: _”Nóis bajeia” e iam em frente fazendo filhos, e vieram a Margareth, o Luciano, o Fernando e o Paulo. Ufa! Seis filhos.
Ainda Gercina, cuidava com carinho, atenção e dedicação de cada um e de todos, sempre mais envolvida com aquele que mais precisava dela sem, no entanto, descuidar dos outros.
Forte e corajosa enfrentava o marido quando ele, esquentado, chegava em casa nervoso e ameaçava bater nas crianças por qualquer motivo. Às vezes quando algum filho aprontava uma peripécia das grandes ela sempre tentava resolver ou, se tivesse que envolver o marido, dava um jeito de “esconder” as crianças até ele se acalmar.
Os filhos foram crescendo e os problemas aparecendo, um a um com cada um, e ela, sempre por perto, cuidava de tentar amenizar a situação atendendo os filhos e protegendo o marido de maiores aborrecimentos.
Vieram os primeiros netos e Gercina virou vovó GG e continuou cuidando agora não só dos filhos e do marido, mas também dos netos, não como substituta das mães, mas como avó, sempre presente nos momentos que filhas e noras precisavam dela.
Criou junto com o marido um patrimônio sólido e, quando chegava o tempo de descansar e curtir a vida com mais sossego, viu seu marido sofrer um AVC e sua vida virar de pernas pro ar.
GG, a eterna dona de casa que nunca tinha assinado um cheque, era agora responsável também pelo sustento da família e, com coragem e determinação arregaçou as mangas e foi fazer, agora para sustentar a família, aquilo que sempre fez por amor, virou padeira, fazia pães para vender e sustentar a casa que construíra junto com o marido que agora não podia mais estar á frente de tudo e ela trabalhou e cuidou e venceu.
Quando parecia que as coisas estavam melhores viu o marido deixar de enxergar e junto com a cegueira daquele homem forte, vigoroso, trabalhador veio, mais uma vez, a força da mulher cuidadora e ela cuidou, cuidou e cuidou. Foram quinze anos de cegueira até a escuridão total que aconteceu no dia que Gercina completava 72 anos e ela enfrentou com coragem e força aquele funesto presente de aniversário.
GG, 78 anos de amor, dedicação e cuidados. Aquela bela mulher que bordava vestidos e encantava estudantes de odontologia tornou-se uma bela senhora amadurecida pelos anos de luta e de luto.
Agora, como uma velha senhora que já teve seu tempo de cuidados e que poderia “aposentar” continua cuidando enquanto interrompe com gosto, para atender filhos e netos, as palavras cruzadas ou quebra-cabeças que são seus afazeres preferidos.
Continua lidando com linhas e agulhas, seja costurando, seja fazendo tricô ou crochê enquanto descansa das atividades domésticas que, apesar dos seus 78, ela faz com gosto. Gosto de feijão, o melhor que já comi , gosto de frango ensopado e de café com bolo de fubá que ela faz para receber os seis filhos e dezesseis netos.
Eu, por minha vez, aprendi muito com essa mulher. Aprendi e continuo aprendendo e torcendo para que, quando eu for avó, meus netos tenham o privilégio de ter uma biza e que eles a chamem de biza G, assim como meus filhos tiveram uma avó e a chamaram de vovó GG.

Lurdinha Danezy
09/05/2009

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

MEU ENCONTRO COM JESUS




























por Lurdinha Danezy


Nasci num lar religiosamente dividido, mãe católica não praticante e pai comunista, ateu convicto.
Moradora de cidade do interior fui educada em escola de freiras, na primeira fase do ensino fundamental, e de padres, na segunda fase. Frequentava a missa todo domingo, e também participava dos eventos religiosos, quermesses, encontros com Deus, chamados de retiro espiritual, realizados em chácaras, ia com amigos e era bom. Eu não sabia muita coisa e participava de tudo sem questionar nada.
Durante boa parte da infância tivemos a companhia da avó materna, carola de carteirinha nos obrigava a ajoelhar e rezar o terço uma vez semana. Ela ia à missa e rezava o terço todos os dias, como era uma mulher muito difícil e amarga eu sempre questionava a razão de uma pessoa religiosa ser assim... tão infeliz.
Lembro que minha mãe era amiga de um padre, Frei Francisco, ele freqüentava nossa casa, tomava caipirinha com ela e um dia abandonou a batina para casar com a irmã Marta, uma bela freira que pertencia à mesma paróquia.
Lembro também que gostava de roubar hóstias, ainda não consagradas, na pequena sala onde eram confeccionadas e guardadas.
Meu pai, comunista, crítico dos dogmas da igreja, falava sobre Marx, Engels, Lenin, Mao Tse Tung , Fidel Castro e Che Guevara, e eu achava o máximo!
Vi meu pai ser preso e minha mãe segurar, com fé, a educação e os cuidados dos seis filhos enquanto aguardava o retorno do marido preso comunista. Papai ficou quinze dias na cadeia e depois disso, durante anos, dizia sempre que aquela tinha sido a única vez na vida que tirara férias. Tinha muito orgulho de ter ido para a prisão já que estava defendendo suas idéias e seus ideais humanitários, ele, homem justo e humano queria ajudar toda a humanidade a ter melhores condições de vida. Quando alguém falava em Cristo ele dizia que Marx era o ateu mais cristão que conhecia e que Jesus era um grande comunista.
Cresci entre o comunismo e o catolicismo e devo confessar que sempre tive preferência pelo primeiro. Fui estudar história o que fez com que conhecesse ainda mais os dois lados, agora pelos livros e não mais pelas freiras, padres, pai e mãe.
Durante toda a vida, mesmo tendo um discurso dentro dos ideais do materialismo histórico, buscava a espiritualidade. Sempre achei que espiritualidade é uma coisa e religiosidade é outra e tinha grande dificuldade com a Igreja.
Depois de formada fui lecionar história numa escola de freiras e como não podia fugir da minha ideologia, era a professora comunista, sempre ameaçada de demissão. Como era boa professora e mexia com a cabeça dos alunos colocando questionamentos e dando as informações que ninguém dava, era muito querida e respeitada por eles e sempre que vinha a ameaça de demissão, os meninos faziam greve e a diretora tinha que voltar atrás. Lembro como se fosse hoje a cara de alívio da Irmã Socorro, diretora da escola, quando fui pedir minha demissão. Ela me abraçou e disse que estava muito feliz com o meu pedido, finalmente ela se livraria da ameaça comunista na sua escola. Isso aconteceu alguns anos antes do fim do regime militar.
Adorava Fernando Pessoa e tinha uma predileção pelo poema que falava de Jesus. Pessoa era muito crítico em relação à Igreja e falava horrores de Deus, de Nossa Senhora e do Espírito Santo. Dizia que Jesus não tivera mãe, que ela era uma mala em que ele tinha vindo do céu e que Deus era um velho estúpido e doente sempre a escarrar no chão e a dizer indecências.
Era tão apaixonada por Fernando Pessoa que vivia com o livro de suas obras completas embaixo do braço e como a brochura parecia uma bíblia todos que me viam achavam que se tratava de uma pessoa muito devota. Mal sabiam eles que eu passava horas decorando poemas que falavam mal de Deus.
Certo dia recebi um telefonema de uma jovem que conheceu meu trabalho como escultora na sua festa de formatura, a peça principal da decoração era uma grande cobra enrolada num cajado, símbolo da odontologia, que eu havia feito sob encomenda. Ela disse que precisava de um crucifixo e eu disse que ela poderia passar no atelier para conversarmos, afinal o que era uma cruz para quem já tinha feito uma cobra enrolada num cajado?
No dia marcado ela veio ao atelier, não veio sozinha, estava em companhia de um padre. Nos últimos anos só tivera contato com a igreja e com padres quando precisava ir á missa de sétimo dia de entes queridos, como meu pai, por exemplo, também fui à missa que deu à minha filha a primeira comunhão, resultado de uma decisão dela e não minha. Joana quis fazer catequese e durante um ano freqüentou as aulas, foi crismada no mesmo dia da primeira comunhão.
Outro dia Joana chegou em casa esbaforida perguntando se eu já tinha ouvido falar em Maria Madalena, eu disse que sim e ela questionou porque nunca tinham dito a ela que Madalena tinha sido amante de Jesus. Ela acabara de ler essa informação no livro Código da Vinci e queria a minha confirmação. Aquele livro mexeu com a cabeça da minha menina, será que eu deveria ter conversado mais sobre a Igreja, sua história e seus mitos?
O padre e a moça queriam um crucifixo com Jesus e tudo, deveria ter três metros por dois e teria que estar pronto em 30 dias, seria para festa de Corpus Christi. Não sei por que não disse não e, por não ter dito, aceitei o desafio de fazer Jesus. O padre me deu um pequeno crucifixo para servir de modelo, acertamos o preço, eles foram embora e eu fiquei ali olhando para aquela cruz e pensando... E agora?
Passei as quatro primeiras noites sem conseguir dormir direito pensando em Jesus, não só Jesus mesmo como também na escultura e em como fazê-la. Já tinha tido uma experiência com escultura de corpo humano, daquela vez eram apenas partes do corpo e chamei de “pedaços de Raquel”, agora era um corpo inteiro, ainda por cima pregado numa cruz enorme e, não era um corpo qualquer, era o corpo de Jesus.
Aquela velha disputa voltou á minha cabeça e fiquei outra vez entre a cruz e a espada ou seria melhor dizer entre a cruz e a foice?
Decidido como faria comecei o trabalho. Primeiro montei a cruz e depois, contando com a participação do meu filho Pedro, que me serviu de modelo, fui fazendo Jesus por partes. Enquanto fazia Jesus parte a parte sentia-me Maria, estava gestando Jesus. Ao juntar as partes e, finalmente ter um homem, sentia-me como Madalena a acariciar delicadamente o corpo nu de Jesus.
Quando minha amiga Nancy perguntou se eu aproveitava o tempo da confecção para conversar com Jesus, fiquei atônita diante da situação. Como conversar com Jesus passando as mãos inclusive nas partes íntimas dele?
Meu Deus! Sou uma herege, agnóstica, atéia, louca ou o quê?
Tenho convivido com Jesus, no último mês, mais do que minha vida toda, acordo e durmo com ele ou pensando nele. Penso na escultura, mas também penso no homem e no que Ele representa para a humanidade.
Adquiri uma tamanha intimidade com Jesus que, depois de pronto, já o trato como se fosse um amigo, dou bom dia, boa noite e peço desculpas quando falo alguma bobagem.
Não sei o que aconteceu comigo depois que Jesus entrou na minha vida, só sei que o tempo que ele ficou comigo me fez uma pessoa diferente, sentindo-me levemente feliz.
Talvez esta sensação de felicidade seja por ter conseguido transformar uma idéia, misturada com cola e papel em um homem. Talvez por esse homem ser Jesus e ser o Pedro, meu filho. Talvez por eu me sentir á vezes Maria e às vezes Madalena.
Aí, pensando no Jesus sofrido e crucificado que vejo diante de mim lembro, de novo, do menino Jesus de Fernando Pessoa e de quando ele diz:
“A Criança Nova que habita onde vivoDá-me uma mão a mimE a outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,Saltando e cantando e rindoE gozando o nosso segredo comumQue é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundoE que tudo vale a pena.”
Me sinto como o poeta e fico em paz.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

PARA MARCELO ABREU

por Lurdinha Danezy

Aquele 05 de maio amanheceu mais claro, mais limpo, mais feliz.
A primeira coisa que fiz foi abrir o Correio Braziliense e buscar, ansiosa, a contra capa do caderno Cidades. Era lá que eu iria encontrar.
Quem ama Marcelo Abreu sabe disso.
Era o dia da abertura da exposição de Lucio no STJ, um dia aguardado com muita ansiedade e muita expectativa.
Era também o dia da publicação da matéria de Marcelo sobre a exposição “O menino que virou arte” e, como era de esperar, ficou bela, sincera e emocionante. Chorei como choro a cada conquista de Lucio.
“O melhor quadro de Lucio: ele mesmo” é tudo que uma mãe quer ler sobre seu filho.Com sua sensibilidade Marcelo Abreu soube, outra vez, enriquecer e valorizar o trabalho dele e o meu também.
Quando Lucio entrou na minha vida trouxe com ele pessoas especiais, muito especiais. Marcelo é uma dessas pessoas e, além de ser muito especial, torna nossa vida ainda mais especial.
Quando fala de nós nos dá uma dimensão maior, significa e resignifica nossa existência e nossa disposição para a vida, para o amor e para a crença de que sempre vale a pena trabalhar para o crescimento, nosso e do outro.
O melhor quadro de Lucio é ele mesmo e Marcelo pinta Lucio divinamente.
Quando fazemos um trabalho que consideramos importante, não só para nós, mas para outros que, como nós, precisam se afirmar a cada dia, queremos ver nosso esforço reconhecido. Marcelo Abreu nos dá essa possibilidade, apresenta-nos aos outros, seus leitores, com verdade, sensibilidade, beleza e emoção.
Marcelo mostra Lucio com o que ele tem de melhor, entende que o talento, a alegria, o entusiasmo e a competência são maiores do que sua condição biológica.
Mas não é só Lucio que ele percebe, Marcelo tem a rara capacidade de perceber o outro. Para ele cada pessoa é singular, preciosa e merecedora de ter sua história contada com respeito e sensibilidade.
Sem medo de errar, coloco-me como representante de seus leitores e ouso falar por eles: Obrigado Marcelo por tornar nossa vida mais rica. Obrigado por nos apresentar pessoas como o sábio Sr. Santil, como Suely a mãe que soube superar a dor da perda para tecer sonhos, por nos mostrar Stella escrevendo sobre o amor aos 79 anos. Obrigado por nos apresentar Alexandre, o rapaz dos ossos de vidro e a sua superação, por Guarany e suas árvores, por tatuar nossa alma com a história dos adolescentes que lutam contra o vírus da AIDS, contra o preconceito e pela vida, por nos fazer chorar com a história de Denise, Edílson, Ítalo e Kelvi à espera do milagre do óleo de Lorenzo e por tantos outros que nos emocionam com a história de suas vidas.
Marcelo percebe o outro na sua inteireza, dá ao outro o valor necessário e, nos mostra, a cada matéria, o caminho para nos tornarmos seres humanos melhores.
Fazer parte da vida de Marcelo, mesmo que por pouco tempo, é um prazer e um privilégio.
Quero aqui, humildemente, agradecer por ele existir na nossa vida.

Lucio e Lurdinha

sábado, 1 de maio de 2010

PARA MARGARETH

Brasília, 01 de maio de 2010.

Para Margareth

Margareth, filha de Gercina e José, a terceira entre seis irmãos.
Nasceu lindinha, loirinha e chorona.
Cresceu abusada, rebelde e desbocada.
Margareth não teve muitas coisas na vida.
Estudou pouco, nunca gostou de escola, não tinha vocação.
Trabalhou pouco, não tinha profissão.
Não casou e não teve filhos, foi uma opção.
Não teve casa, sempre morou na casa da mãe.
Não teve dinheiro nem as coisas que só o dinheiro pode comprar.
Margareth não teve muitas coisas na vida. Margareth teve o que todos gostariam de ter.
Margareth teve amigos e amores.
Os amigos foram muitos e todos fiéis, presentes e participativos da sua vida ao mesmo tempo sem nada, ao mesmo tempo com tudo.
Os amores foram poucos, fortes, intensos e duradouros.
Margareth gostava de comer, comeu muito. Gostava de beber, bebeu muito, gostava de fumar, fumou muito. Gostava de viver, viveu muito.
Agora Margareth morreu.
Não deixou nada, nada material ficou de Margareth.
Margareth morreu. Viveu apenas 50 anos, morreu oito dias depois do seu cinqüentenário.
Margareth deixou tudo, deixou a mãe, os irmãos, os amigos e seu último e mais precioso amor.
Margareth não teve nada e ao mesmo tempo teve tudo.
Margareth teve o mais amoroso, carinhoso, cuidadoso e fiel dos homens de sua vida ao seu lado até o último minuto dela.
Alexandre, grande “Cabão”, grande homem, grande amigo, grande coração. Total dedicação.
Margareth não teve nada e teve tudo.
Que descanse em paz.

Lurdinha

segunda-feira, 26 de abril de 2010

CARTA AO CONSELHO DE SAÚDE DO DF

Brasília, 18 de abril de 2010.

Prezados Senhores Conselheiros,

Venho por meio desta pedir esclarecimentos quanto à conduta do Conselho de Saúde em relação ao caos vivido pelo Hospital de Base de Brasília.
Há dois anos minha irmã é paciente da neurocirurgia do HDB. Já fez várias cirurgias, algumas delas conseguidas com a intervenção do Conselheiro Michel Platini, outras com a atuação da família buscando contato com a diretoria, chefes de equipe, além de pressionar o médico responsável, o ministério público e defensoria pública, para que as cirurgias fossem feitas. De modo geral as cirurgias só acontecem se o paciente tem um iminente risco de morte e se a família fica em cima. Caso contrário há sempre a desculpa de falta de salas no centro cirúrgico de anestesista.
Falta tudo no Hospital de Base.
Faltam médicos e enfermeiros suficientes para atender a quantidade de pacientes. Faltam compromisso e vontade dos médicos para atender os pacientes com o mínimo de humanidade (muitos médicos só falam com os pacientes e seus familiares mediante insistência, raramente aparecem e quando isso acontece, apenas olham os exames e pedem outros sem ao menos perguntar ao paciente como ele está se sentindo).
Fico no Hospital de Base como acompanhante e, enquanto cuido da minha irmã, acompanho o hospital ficar cada dia pior.
Falta quase tudo no Hospital de Base. Faltam aparelhos funcionando, de tomografia, de endoscopia, de esterilização. Falta esparadrapo, agulhas e luvas, falta lençol, fralda e água quente.
Os pacientes são obrigados a tomar banho de água e fria e se precisam de uma compressa de água quente o máximo que se consegue é uma água levemente morna. E, por falar em banho, faltam barras de apoio nos banheiros e, pacientes com dificuldade de locomoção e equilíbrio acabam caindo ensaboados no chão frio e sujo do banheiro do pronto-socorro.
Ainda faltam padioleiros, cadeiras de rodas e leitos. O Pronto Socorro lotado abriga pacientes em macas improvisadas e não é raro encontrar pacientes no chão.
Hoje no 3º andar tinham 03 enfermeiras para cada 07 pacientes e o 3º andar é o da neurocirurgia, das 21 pacientes apenas uma anda, as outras dependem das enfermeiras ou acompanhantes para comer, tomar banho, trocar fraldas além de outras necessidades.
Em nome do “conforto” a diretoria do Hospital resolveu mudar a entrada de visitas e acompanhantes para a portaria central, assim aqueles que andam de ônibus demoram cerca de vinte minutos para chegar da parada até a portaria e depois ainda são obrigados a andar uma distância considerável para alcançar o Pronto Socorro ou as enfermarias. A entrada do estacionamento foi fechada e o acompanhante ou visitante tem que atravessar o imenso estacionamento pelo lado de fora para passar na guarita sem nenhuma acessibilidade. E, quando consegue chegar á portaria ainda tem que enfrentar uma fila para identificação. Minha mãe com seus 79 anos não consegue visitar minha irmã por não ter condições de andar distância tão grande.
Mas não é só de faltas que vive o Hospital de Base. Temos também muitos excessos. Excessos de doentes, de problemas, de descaso, de desrespeito, de desumanidade, de humilhação, de jogo de empurra. Lá ninguém é responsável por nada, a culpa é sempre do outro.
E aqui fica a pergunta. Quem vai cuidar do caos que está o HDB?
Hoje o nosso hospital, que já foi referência, está agonizando e com ele todos os funcionários e pacientes.
Quem vai assumir a responsabilidade?Qual é o papel do Conselho de Saúde do DF nesta questão?

Lourdes Cabral Piantino em nome de Margareth Cabral Piantino paciente da neurocirurgia do HDB.

CARTA A UM AMIGO DA MARGARETH

Escrito em 11 de janeiro de 2010

Oi Rodrigo,

Estou escrevendo para pedir que visite a Margô.
Ela está com 70% do cerebelo lesado e seu cérebro tomado por água. Já
não fala coisa com coisa, mas tem falado muito em você. Pergunta se eu
gostei da fazenda do Digão, se eu fui à festa do Digão ou se eu recebi
o convite da comemoração dos 45 anos de casado do Digão, entre outros
tantos comentários sem sentido.
Não é difícil encontrá-la. Ela está internada no Pronto Socorro do
Hospital de Base posto 1, o da neurocirurgia. O leito da Margô fica no
último corredor á esquerda, fica bem ao lado da ala dos presidiários.
Para chegar lá você vai passar por todo o PS, basta seguir o primeiro
corredor com macas dos dois lados onde você poderá ver todo tipo de
gente doente acomodada do jeito que dá em leitos improvisados e em
condições muito precárias.
Você vai passar por homens, mulheres, crianças e idosos costurados,
enfaixados, baleados, esfaqueados, debilitados.
Alguns estarão vestindo apenas fraldas outros estarão com suas partes
íntimas expostas enquanto um familiar tenta fazer a higiene com o que
tem (quando tem), ou seja, água e papel toalha.
Passará também por pacientes deitados sobre colchões sem lençol uma
vez que a quantidade deles não é suficiente para todos. Verá leito
coberto com lençol sujo de sangue ou de urina daquele paciente que
não tem um acompanhante para cuidá-lo.
Cuidado para não tropeçar em copos plásticos ou lençóis sujos que
ficam pelo chão aguardando a moça da limpeza, ela passa uma vez por
dia e não recolhe o lençol por não ser sua função.
Verá ainda, acompanhantes que passam os dias e as noites sentados em
cadeiras tão raras que quando é sabido de uma alta todos ficam de olho
na tentativa de pegar a cadeira do que vai sair.
Nem pense em ir ao banheiro. Você pode dar de cara com um paciente nu,
deitado no chão do espaço destinado ao banho, que não tem sequer uma
porta, e, olhando com cuidado verá que a queda aconteceu por falta de
uma barra de apoio. Aconteceu com a Margô e foi muito difícil
conseguir um enfermeiro que pudesse ajudar a levantar os 90Kg dela e
colocá-la numa cadeira de plástico emprestada por uma boa alma que acompanhava um dos internos.
Não queira falar com o médico da Margô, você não vai encontrá-lo.
Desde que ela foi internada, ainda em 2009, dia 30 de dezembro, só
aparece por lá um residente que pede os exames, mas não pode fazer
nada, não tem autoridade para decidir sobre a condução do tratamento
dos pacientes.
Prepare-se. Aquele não é um lugar bom de se ver. Qualquer um que tenha
passado por lá consegue ter a clara idéia do que seja o inferno.
Alguns o chamam de Faixa de Gaza, a mim parece a sala de espera do inferno.
Mesmo assim, vá ver a Margô.

Abraços.

Lurdinha

SOBRE MINHA IRMÃ MARGARETH

Escrito em 11/9/2009



Internos da “Faixa de Gaza” do HDB pedem socorro

O nome dela é Margareth, tem 49 anos e está internada no pronto
socorro do Hospital de Base de Brasília aguardando o momento da
cirurgia, ao seu lado inúmeros pacientes na mesma situação.
É sua quarta internação pelo mesmo motivo, um acúmulo de líquido no
cérebro causado por malformação genética que se manifestou aos 48
anos. Da primeira vez, depois de vários dias internada no corredor pronto
socorro, a cirurgia foi feita e ela voltou pra casa bem. Meses depois
teve que retornar ao hospital para nova cirurgia, dessa vez foi
colocada uma válvula para drenar o líquido da cabeça para a barriga.
Dias depois começou a aparecer um grande caroço na barriga que foi só
aumentando. De volta ao hospital, de volta internada no corredor,
foram feitos vários exames e talvez por não saberem exatamente o que
fazer, os médicos a mandaram de volta para casa.
Agora ela está lá no mesmo corredor, apelidado pelos internos de
“Faixa de Gaza” aguardando há cinco dias o momento da cirurgia. Pela
manhã passa a enfermeira e diz que ela está de dieta zero para a
cirurgia, no final da tarde vem, junto com o jantar, a notícia de que
a cirurgia só acontecerá no dia seguinte, e, a cada dia, o ritual se
repete, jejum e promessa de cirurgia permanecem.
Enquanto Margareth está internada tendo como companhia apenas os
outros internos, sua mãe de 78 anos se consome de preocupação com a
eterna expectativa da cirurgia que nunca acontece e, enquanto o caroço
aumenta, aumentam também a ansiedade, a angustia, a tristeza e
principalmente a indignação.
E aí, nós cidadãos que pagamos impostos, perguntamos ás autoridades responsáveis pela saúde desta cidade:
Onde está o respeito pelos doentes?
Onde estão as condições necessárias para um bom atendimento?
Onde está a consideração com o indivíduo que é obrigado a entregar sua
vida nas mãos de profissionais pouco comprometidos com o outro?
O que fazer para termos um atendimento digno?
Enquanto as respostas não vêm as Margareths, Marias, Madalenas,
Paulos, Pedros e tantos outros ficam abandonados na “Faixa de Gaza”
torcendo para que a guerra de interesses pessoais dos políticos tenha
um fim.