por Lurdinha Danezy
Nasci num lar religiosamente dividido, mãe católica não praticante e pai comunista, ateu convicto.
Moradora de cidade do interior fui educada em escola de freiras, na primeira fase do ensino fundamental, e de padres, na segunda fase. Frequentava a missa todo domingo, e também participava dos eventos religiosos, quermesses, encontros com Deus, chamados de retiro espiritual, realizados em chácaras, ia com amigos e era bom. Eu não sabia muita coisa e participava de tudo sem questionar nada.
Durante boa parte da infância tivemos a companhia da avó materna, carola de carteirinha nos obrigava a ajoelhar e rezar o terço uma vez semana. Ela ia à missa e rezava o terço todos os dias, como era uma mulher muito difícil e amarga eu sempre questionava a razão de uma pessoa religiosa ser assim... tão infeliz.
Lembro que minha mãe era amiga de um padre, Frei Francisco, ele freqüentava nossa casa, tomava caipirinha com ela e um dia abandonou a batina para casar com a irmã Marta, uma bela freira que pertencia à mesma paróquia.
Lembro também que gostava de roubar hóstias, ainda não consagradas, na pequena sala onde eram confeccionadas e guardadas.
Meu pai, comunista, crítico dos dogmas da igreja, falava sobre Marx, Engels, Lenin, Mao Tse Tung , Fidel Castro e Che Guevara, e eu achava o máximo!
Vi meu pai ser preso e minha mãe segurar, com fé, a educação e os cuidados dos seis filhos enquanto aguardava o retorno do marido preso comunista. Papai ficou quinze dias na cadeia e depois disso, durante anos, dizia sempre que aquela tinha sido a única vez na vida que tirara férias. Tinha muito orgulho de ter ido para a prisão já que estava defendendo suas idéias e seus ideais humanitários, ele, homem justo e humano queria ajudar toda a humanidade a ter melhores condições de vida. Quando alguém falava em Cristo ele dizia que Marx era o ateu mais cristão que conhecia e que Jesus era um grande comunista.
Cresci entre o comunismo e o catolicismo e devo confessar que sempre tive preferência pelo primeiro. Fui estudar história o que fez com que conhecesse ainda mais os dois lados, agora pelos livros e não mais pelas freiras, padres, pai e mãe.
Durante toda a vida, mesmo tendo um discurso dentro dos ideais do materialismo histórico, buscava a espiritualidade. Sempre achei que espiritualidade é uma coisa e religiosidade é outra e tinha grande dificuldade com a Igreja.
Depois de formada fui lecionar história numa escola de freiras e como não podia fugir da minha ideologia, era a professora comunista, sempre ameaçada de demissão. Como era boa professora e mexia com a cabeça dos alunos colocando questionamentos e dando as informações que ninguém dava, era muito querida e respeitada por eles e sempre que vinha a ameaça de demissão, os meninos faziam greve e a diretora tinha que voltar atrás. Lembro como se fosse hoje a cara de alívio da Irmã Socorro, diretora da escola, quando fui pedir minha demissão. Ela me abraçou e disse que estava muito feliz com o meu pedido, finalmente ela se livraria da ameaça comunista na sua escola. Isso aconteceu alguns anos antes do fim do regime militar.
Adorava Fernando Pessoa e tinha uma predileção pelo poema que falava de Jesus. Pessoa era muito crítico em relação à Igreja e falava horrores de Deus, de Nossa Senhora e do Espírito Santo. Dizia que Jesus não tivera mãe, que ela era uma mala em que ele tinha vindo do céu e que Deus era um velho estúpido e doente sempre a escarrar no chão e a dizer indecências.
Era tão apaixonada por Fernando Pessoa que vivia com o livro de suas obras completas embaixo do braço e como a brochura parecia uma bíblia todos que me viam achavam que se tratava de uma pessoa muito devota. Mal sabiam eles que eu passava horas decorando poemas que falavam mal de Deus.
Certo dia recebi um telefonema de uma jovem que conheceu meu trabalho como escultora na sua festa de formatura, a peça principal da decoração era uma grande cobra enrolada num cajado, símbolo da odontologia, que eu havia feito sob encomenda. Ela disse que precisava de um crucifixo e eu disse que ela poderia passar no atelier para conversarmos, afinal o que era uma cruz para quem já tinha feito uma cobra enrolada num cajado?
No dia marcado ela veio ao atelier, não veio sozinha, estava em companhia de um padre. Nos últimos anos só tivera contato com a igreja e com padres quando precisava ir á missa de sétimo dia de entes queridos, como meu pai, por exemplo, também fui à missa que deu à minha filha a primeira comunhão, resultado de uma decisão dela e não minha. Joana quis fazer catequese e durante um ano freqüentou as aulas, foi crismada no mesmo dia da primeira comunhão.
Outro dia Joana chegou em casa esbaforida perguntando se eu já tinha ouvido falar em Maria Madalena, eu disse que sim e ela questionou porque nunca tinham dito a ela que Madalena tinha sido amante de Jesus. Ela acabara de ler essa informação no livro Código da Vinci e queria a minha confirmação. Aquele livro mexeu com a cabeça da minha menina, será que eu deveria ter conversado mais sobre a Igreja, sua história e seus mitos?
O padre e a moça queriam um crucifixo com Jesus e tudo, deveria ter três metros por dois e teria que estar pronto em 30 dias, seria para festa de Corpus Christi. Não sei por que não disse não e, por não ter dito, aceitei o desafio de fazer Jesus. O padre me deu um pequeno crucifixo para servir de modelo, acertamos o preço, eles foram embora e eu fiquei ali olhando para aquela cruz e pensando... E agora?
Passei as quatro primeiras noites sem conseguir dormir direito pensando em Jesus, não só Jesus mesmo como também na escultura e em como fazê-la. Já tinha tido uma experiência com escultura de corpo humano, daquela vez eram apenas partes do corpo e chamei de “pedaços de Raquel”, agora era um corpo inteiro, ainda por cima pregado numa cruz enorme e, não era um corpo qualquer, era o corpo de Jesus.
Aquela velha disputa voltou á minha cabeça e fiquei outra vez entre a cruz e a espada ou seria melhor dizer entre a cruz e a foice?
Decidido como faria comecei o trabalho. Primeiro montei a cruz e depois, contando com a participação do meu filho Pedro, que me serviu de modelo, fui fazendo Jesus por partes. Enquanto fazia Jesus parte a parte sentia-me Maria, estava gestando Jesus. Ao juntar as partes e, finalmente ter um homem, sentia-me como Madalena a acariciar delicadamente o corpo nu de Jesus.
Quando minha amiga Nancy perguntou se eu aproveitava o tempo da confecção para conversar com Jesus, fiquei atônita diante da situação. Como conversar com Jesus passando as mãos inclusive nas partes íntimas dele?
Meu Deus! Sou uma herege, agnóstica, atéia, louca ou o quê?
Tenho convivido com Jesus, no último mês, mais do que minha vida toda, acordo e durmo com ele ou pensando nele. Penso na escultura, mas também penso no homem e no que Ele representa para a humanidade.
Adquiri uma tamanha intimidade com Jesus que, depois de pronto, já o trato como se fosse um amigo, dou bom dia, boa noite e peço desculpas quando falo alguma bobagem.
Não sei o que aconteceu comigo depois que Jesus entrou na minha vida, só sei que o tempo que ele ficou comigo me fez uma pessoa diferente, sentindo-me levemente feliz.
Talvez esta sensação de felicidade seja por ter conseguido transformar uma idéia, misturada com cola e papel em um homem. Talvez por esse homem ser Jesus e ser o Pedro, meu filho. Talvez por eu me sentir á vezes Maria e às vezes Madalena.
Aí, pensando no Jesus sofrido e crucificado que vejo diante de mim lembro, de novo, do menino Jesus de Fernando Pessoa e de quando ele diz:
“A Criança Nova que habita onde vivoDá-me uma mão a mimE a outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,Saltando e cantando e rindoE gozando o nosso segredo comumQue é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundoE que tudo vale a pena.”
Me sinto como o poeta e fico em paz.
Maravilhoso, sensível, genuíno, íntegro, decente, desnudo, fiquei feliz lendo-o, parabéns. E cá pra nós amiga, que riqueza de experiência a tua vida, pelo menos pra quem está olhando de fora.
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