domingo, 30 de agosto de 2009

O FATO DO FLATO

Por que a escola convoca os pais?

Certa manhã fui chamada ás presas pela escola do meu filho sob a alegação de que ele teria feito cocô nas calças. Como esses acidentes podem acontecer com qualquer um, peguei uma roupa e fui imediatamente à escola "salvar" o meu filho, já imaginando seu constrangimento e pensando em como limpá-lo já que sabemos que as escolas não estão preparadas para "acidentes de percurso" como estes.

Quando lá cheguei encontrei meu filho feliz e vestido com a roupa que teoricamente estaria toda suja. Fui verificar e constatei que todo o estardalhaço da escola era causado por um flato, é isso mesmo, um flato também conhecido como ventosidade, pum ou peido.

Vejam bem, meus amigos a mãe deixa seus afazeres profissionais devido a uma suposição infundada da escola de que todo flato faz-se acompanhar de matéria fecal.

O que terá causado o chamado urgente da mãe á escola? O flato em si ou o fato do flato ter sido praticado por um menino com síndrome de Down?

Como e porque lutar por uma escola inclusiva onde a criança não tem sequer o direito de flatular?

Que escola é esta e que educadores são estes que supõem que o menino estava todo enfezado, para não dizer cagado, por causa de um flato mais malcheiroso do que os habitualmente sentidos por narizes convencionais.
Tal fato teria acontecido se o flato tivesse sido praticado por um aluno convencional?
Qual, na opinião de vocês, deve ser a atitude de uma mãe que é chamada á escola por tal fato? Deverá ela proibir o filho de praticar o ato de flatular na escola? Deverá ela mudar sua alimentação para que o flato seja mais cheiroso?

Pois é, meus amigos, preciso muito da ajuda de vocês para resolver esta questão.
O que eu devo fazer? Meu filho precisa e tem direito, mas ele, por ter síndrome de Down, não pode sequer flatular nas dependências da escola.

O que fazer?

A ESCOLA TEM SALVAÇÃO?

Lurdinha Danezy - mãe do Lucio

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

MÃE GERCINA, VOVÓ GG

Escrevi este texto como presente de aniversário para minha mãe quando ela completou 78 anos. Hoje, 24 de agosto de 2014, me preparo para a derradeira despedida. Ontem ela foi ao encontro da luz depois de meses de muita dor e sofrimento que ela aguentou quase sempre com um sorriso no rosto. Não queria morrer, fazia planos, queria andar e sair por aí.
Algumas horas antes de perder a consciência me pediu para que quando saísse do hospital fôssemos a uma loja de tecido para comprar um bem colorido com muitas flores para eu fazer uma blusa pra ela, me instituiu sua costureira oficial. Prometi que faria. Não pude cumprir a promessa.

(Para minha mãe)
Ela tem 78 anos. Nasceu Gercina e virou vovó GG.
Mulher forte corajosa teve uma vida de superações. Ainda criança, aos seis anos, viu sua mãe abandonar os três filhos com o pai na fazenda da família em busca de um destino melhor. Ela, a única mulher da casa, teve que assumir sua condição desde cedo e, subindo num banquinho para alcançar as pesadas panelas, cozinhava naquele enorme fogão à lenha.
Anos depois pode ver a mãe chegar, linda num vestido de bolas, para buscar os filhos para aquele que acreditava ser o destino melhor. Foi assim que ela foi morar na cidade em companhia dos irmãos, da mãe e daquele que seria seu querido, amado e lembrado “pai”, homem escolhido pela mãe e que acolheu cada filho dela como se dele fosse.
Estudou pouco, mas aprendeu muito. Habilidosa, ajudava nas despesas familiares bordando lindos vestidos, bordou também o seu belo vestido de noiva para casar com o companheiro escolhido. Um jovem dentista recém formado dono de um porte atlético e uma bela cabeleira que foi aos poucos caindo, fio a fio e o transformando num charmoso careca.
Mudou com o marido para longe da família e enfrentou com ele as dificuldades dos primeiros anos de casada cozinhando não mais em um grande fogão á lenha, mas num pequeno fogareiro de duas bocas.
Engravidou logo e, antes de completar um ano de casada, teve sua primeira filha chamou-a Elizabeth. Pouco mais de um ano depois chegava sua segunda filha que recebeu o nome de Lourdes em agradecimento á uma graça feita por Nossa Senhora de Lourdes que cuidou para que o bebê ficasse bem depois daquela queda que valeu a ela um braço quebrado na tentativa de proteger a barriga que carregava seu segundo bebê.
Daí pra frente não parou mais de parir. O marido, italiano fogoso, não perdoava e sempre que ela dizia, na hora do amor que já tinham muitos filhos, ele argumentava: _”Nóis bajeia” e iam em frente fazendo filhos, e vieram a Margareth, o Luciano, o Fernando e o Paulo. Ufa! Seis filhos.
Ainda Gercina, cuidava com carinho, atenção e dedicação de cada um e de todos, sempre mais envolvida com aquele que mais precisava dela sem, no entanto, descuidar dos outros.
Forte e corajosa enfrentava o marido quando ele, esquentado, chegava em casa nervoso e ameaçava bater nas crianças por qualquer motivo. Às vezes quando algum filho aprontava uma peripécia das grandes ela sempre tentava resolver ou, se tivesse que envolver o marido, dava um jeito de “esconder” as crianças até ele se acalmar.
Os filhos foram crescendo e os problemas aparecendo, um a um com cada um, e ela, sempre por perto, cuidava de tentar amenizar a situação atendendo os filhos e protegendo o marido de maiores aborrecimentos.
Vieram os primeiros netos e Gercina virou vovó GG e continuou cuidando agora não só dos filhos e do marido, mas também dos netos, não como substituta das mães, mas como avó, sempre presente nos momentos que filhas e noras precisavam dela.
Criou junto com o marido um patrimônio sólido e, quando chegava o tempo de descansar e curtir a vida com mais sossego, viu seu marido sofrer um AVC e sua vida virar de pernas pro ar.
GG, a eterna dona de casa que nunca tinha assinado um cheque, era agora responsável também pelo sustento da família e, com coragem e determinação arregaçou as mangas e foi fazer, agora para sustentar a família, aquilo que sempre fez por amor, virou padeira, fazia pães para vender e sustentar a casa que construíra junto com o marido que agora não podia mais estar á frente de tudo e ela trabalhou e cuidou e venceu.
Quando parecia que as coisas estavam melhores viu o marido deixar de enxergar e junto com a cegueira daquele homem forte, vigoroso, trabalhador veio, mais uma vez, a força da mulher cuidadora e ela cuidou, cuidou e cuidou. Foram quinze anos de cegueira até a escuridão total que aconteceu no dia que Gercina completava 72 anos e ela enfrentou com coragem e força aquele funesto presente de aniversário.
GG, 78 anos de amor, dedicação e cuidados. Aquela bela mulher que bordava vestidos e encantava estudantes de odontologia tornou-se uma bela senhora amadurecida pelos anos de luta e de luto.
Agora, como uma velha senhora que já teve seu tempo de cuidados e que poderia “aposentar” continua cuidando enquanto interrompe com gosto, para atender filhos e netos, as palavras cruzadas ou quebra-cabeças que são seus afazeres preferidos.
Continua lidando com linhas e agulhas, seja costurando, seja fazendo tricô ou crochê enquanto descansa das atividades domésticas que, apesar dos seus 78, ela faz com gosto. Gosto de feijão, o melhor que já comi , gosto de frango ensopado e de café com bolo de fubá que ela faz para receber os seis filhos e dezesseis netos.
Eu, por minha vez, aprendi muito com essa mulher. Aprendi e continuo aprendendo e torcendo para que, quando eu for avó, meus netos tenham o privilégio de ter uma biza e que eles a chamem de biza G, assim como meus filhos tiveram uma avó e a chamaram de vovó GG.

Lurdinha Danezy
09/05/2009

domingo, 23 de agosto de 2009

SEMENTE DA INCLUSÃO


O nome deste garotinho é Théo, poderia ser Lucio, Ian ou Rafael, mas é Théo.
Ele já foi uma sementinha como esta que você está recebendo agora, só que de gente. Quando ele nasceu, seus pais souberam que precisavam cuidar muito bem dele para que pudesse crescer com saúde e se desenvolver como todos os bebês que nascem como ele, pequenos e frágeis.
Papai e mamãe entenderam, desde cedo, que quem ama cuida e acredita que uma coisinha pequena cresce e vira gente e, para que isso aconteça, é preciso amor, dedicação e também acreditar que tudo na vida depende de como o começo começa, ou seja, de como cuidamos da semente.
A inclusão das pessoas que nasceram diferentes da maioria é uma idéia e uma vontade. Desejo dos que tiveram a oportunidade e o privilégio de conhecer alguém assim, diferente.
Se cada um que está recebendo esta semente, que é a semente da inclusão e do respeito à diversidade, cuidar dela com carinho, respeito e atenção, quando o Théo for um homem, poderá caminhar por todos os lugares livre do preconceito e da discriminação.
Este é o Théo, se parece muito como o pai e também com o Lucio, o Ian e o Rafael, e ele sabe que a semelhança nos iguala e que a diferença nos identifica e o importante é que cada um seja reconhecido por quem é.
Ah! Esqueci de dizer, ele tem síndrome de Down, mas.....isso é apenas um detalhe.

sábado, 8 de agosto de 2009

SOBRE GENTES E LEIS

SOBRE GENTES E LEIS por Lurdinha Danezy


Sou mãe e é como mãe que quero falar sobre o parecer 13 do CNE.
Para os que me conhecem peço que esqueçam dos anos que tenho de luta em defesa da pessoa com deficiência, pensem em mim apenas como a mãe do Lucio.
Lucio nasceu com síndrome de Down e desde então trabalho, todos os dias da minha vida, pelo desenvolvimento dele.
Quando ele nasceu eu não sabia nada sobre síndrome de Down, deficiência, preconceito, inclusão e exclusão, tratei de aprender, ou melhor, a vida tratou de me ensinar. Venho aprendendo nos últimos 14 anos mais do que aprendi minha vida inteira.
Aprendi, por exemplo, que quando você foge do padrão, quando você é gordo demais, baixo demais, magro demais, “feio” demais, pobre, negro, homossexual ou deficiente, você é discriminado e excluído do convívio dos que acreditam que são “normais”, melhores, mais bonitos, mais inteligentes, mais ricos.
A forma como a sociedade vai se conduzir, ou ser conduzida, acaba ficando nas mãos de uma minoria que detêm o poder.
Nós, a esmagadora maioria da população, ficamos a mercê dos “escolhidos” que criam e homologam leis à revelia dos interesses de cada segmento da sociedade.
Aprendi com a vida que não é o cobertor que nos esquenta, o conforto do aquecimento vem de nós mesmos, do nosso próprio calor, da nossa existência viva. O cobertor é apenas a ferramenta que precisamos para nos aquecer. Dependendo do frio precisamos de mais tempo e de mais energia para que o calor do nosso corpo minimize os efeitos do frio.
Dê-me um cobertor que eu me aquecerei.
Nessa perspectiva, as leis são o cobertor e os cidadãos precisam se organizar para usufruir desta ferramenta.
Em tempos de cobertores curtos tem sempre alguém que sente frio.
Em termos de igualdades sociais, vivemos num país de cobertores muito curtos.
Se as leis fossem rigorosamente cumpridas, como deveriam ser, não teríamos tanta miséria, falta de escolas e de educação, falta de saúde e de hospitais, falta de saneamento, urbanismo e acessibilidade, desemprego, violência, preconceito, descriminação e exclusão.
Somos nós e não as leis que construímos, com as nossas ações, uma sociedade justa, igualitária e inclusiva.
O que será que cada um de nós pais, mães e professores de pessoas com deficiência estamos fazendo realmente? O parecer n. 13 parece propor um aumento no cobertor, mas, com certeza, não garante o aquecimento.
O que eles sabem sobre o nosso frio? O que sabem sobre nós e nossos filhos? O que eu, mãe de um menino com síndrome de Down, sei da vida de uma família cujo filho tem comprometimentos múltiplos, não anda, não fala, não ouve, não come sozinho, baba e usa fraldas?
O que EU sei sobre o OUTRO, tão diferente de mim, para falar por ele?
As pessoas com deficiências graves sempre foram excluídas do convívio social, não freqüentam escolas regulares, não vão ao cinema, ao shopping, ao parquinho, à feira ou ao mercado. Algumas pessoas com deficiência passam uma vida inteira dentro de suas casas ou dentro de escolas especiais porque suas condições biológicas as impedem de freqüentar lugares e de conviver com pessoas que exigem uma estética e um comportamento padrão. Assim evitam o preconceito e a discriminação que às vezes se apresentam apenas com um olhar penalizado ou repulsivo.
Para os “fazedores” de leis, que também têm filhos, os nossos são só estatística, para nós são NOSSOS filhos, parte de nós que amamos, cuidamos, respeitamos e se for preciso, protegemos.
Será que TODOS os pais querem que seus filhos façam parte da geração de cobaias da exclusão dentro de escolas regulares que não oferecem - “as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos.”
Será que nossos teóricos e técnicos da educação sabem o que uma família e os profissionais que cuidam de pessoas com deficiências graves passam na tentativa de dar uma vida digna para elas num país de tantas desigualdades e de tanto preconceito?
O meu filho anda, fala, enxerga, ouve, vai ao banheiro e come sozinho, lê, escreve, sabe matemática, joga futebol, basquete, interage com todos, exprime seus sentimentos e vontades, não depende de ninguém, é artista plástico, vai e volta da escola sozinho em ônibus comum e sofreu preconceito e descriminação por parte de muitas pessoas em quase todas as escolas “inclusivas” que freqüentou, e olha que foram muitas.
A escola, de certa forma, acaba sendo apenas uma avaliadora, quando a criança entra na categoria de deficiente, as avaliações são, muitas vezes, baseadas no diagnóstico e não na capacidade dela. Prática comum nas escolas, primeiro vêem a deficiência depois fazem uma leitura errada da criança, leitura muitas vezes baseada no diagnóstico e no prognóstico imposto àquele que nasce com uma diferença biológica. A criança está, então, fadada ao fracasso.
Acredito que o parecer 13 é um avanço na construção de uma sociedade inclusiva e que a construção de uma sociedade inclusiva passa pela escola. É lá que nossos filhos devem passar a maior parte do tempo. Precisamos então colocar nossos filhos na escola e trabalhar para que as leis, já existentes e que garantem os direitos das pessoas com deficiência, sejam cumpridas.
Se não fizermos alguma coisa esta nova resolução será apenas mais uma lei, entre tantas, que garante o direito, impõe a obrigatoriedade e não dá as condições mínimas para a sua aplicabilidade.
Não podemos mais aceitar resoluções e pareceres enfiados goela abaixo sem uma discussão prévia com as pessoas diretamente interessadas, ou seja, os deficientes, os pais e os professores.
Não queremos apenas um cobertor maior, queremos o compromisso do governo com uma educação de qualidade para que tenhamos a tranqüilidade de deixar nossos filhos sob os seus cuidados. Sei que essa garantia também depende de nós.
Como defender uma ou outra escola?
Antes precisamos saber que escola queremos para nossos filhos.
Sabemos que este modelo de escola que nossos filhos estudam tem que ser revisto. Sabemos que neste modelo de escola, nossa tão sonhada inclusão, dificilmente acontecerá.
Enfim, acho perda de tempo ficar discutindo se um parecer deve ou não ser aprovado uma vez que sabemos muito bem que ele vai existir só no papel., como muitas outras leis que “protegem” as pessoas com deficiência.
Nossa luta deve ser pela qualidade das escolas inclusivas e pela oportunidade de uma educação digna, desde os primeiros dias de vida, para que todas as crianças tenham condições e oportunidade de freqüentarem escolas.
Nossa luta deve ser para que, num futuro próximo, escolas especiais sejam coisa do passado e nós possamos viver numa sociedade realmente inclusiva onde a diversidade seja a regra.
Queremos incluir ou apenas dar o acesso de deficientes nas escolas regulares? De quem é a responsabilidade?
Precisamos construir outras escolas, com outros modelos, escolas que respeitem a diversidade, que estejam abertas a todos e queiram formar cidadãos olhando cada um dentro do todo e não apenas o todo.
De maneira prática devemos atuar de forma exigir que as leis vigentes neste país passem de leis escritas e formalizadas a leis funcionais e transformadoras. Falo especificamente das leis de inclusão de pessoas com deficiência no ensino regular, de incluir não só na escola, mas na sociedade em geral, pessoas que nasceram com anomalias genéticas ou diferentes do padrão social, histórica e culturalmente definido como ideal; de respeitar e reconhecer as diferenças como um fato genético, social, cultural e histórico; de preparar pessoas para assumirem esta função nas escolas, nos hospitais e em qualquer lugar que estejam.
Estou falando de compreender que as pessoas com deficiência precisam de pessoas que acreditam que com dedicação, comprometimento e atitude é possível construir uma sociedade melhor.
Acredito que as pessoas com deficiência são competentes e capazes de participar das atividades sociais, estudar, trabalhar, conduzir a própria vida com independência e autonomia. Tenho certeza que para que isso aconteça é necessário que cada um de nós assuma o compromisso de criar condições necessárias para promovê-las como PESSOAS.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Sobre médicos e pacientes (Lurdinha Danezy)

Sobre médicos e pacientes

Tenho 50 anos, já vi e ouvi muitas coisas na minha vida.
Estudei, fiz universidade, especialização, li centenas de livros, aprendi inclusive que o aprendizado é um processo lento, contínuo e ...eterno. Lembro-me sempre do meu pai, ele passou a vida dizendo, a cada novo conhecimento, a célebre frase “Vivendo e aprendendo” e pode constatar, minutos antes de morrer, concluindo sua aprendizagem com a derradeira frase: “morrendo e aprendendo”.
Mas a gente sempre pode ser surpreendida e ouvir coisas inimagináveis, revoltantes, e absurdas como a recente declaração de uma diretora técnica de um grande hospital privado da Capital Federal ao Correio Braziliense quando questionada sobre a superlotação das salas de espera e da longa demora no atendimento na rede particular de saúde.
A médica declarou que “a maior parte dos pacientes da emergência deveria procurar o ambulatório, mas quer ser atendida na hora.” E, para minha total perplexidade, ainda completou o absurdo afirmando que “quem não quiser ficar esperando precisa aprender a diferença entre emergência, urgência e ambulatório.” E, não satisfeita ainda explicou: “Emergência é quando o paciente tem risco de morte ou de sequela permanente caso não seja atendido naquele momento. Urgência é quando o atendimento deve ser rápido, mas não há risco de morte ou de sequela. Quem não se enquadra nesses casos, é paciente de ambulatório.”
Parece que agora, além de paciente - no sentido de resignado, conformado, aquele que espera serenamente um resultado - o usuário do sistema de saúde tem que ser sapiente - no sentido de ser conhecedor das coisas divinas e humanas – um sabedor da diferença entre emergência, urgência e ambulatório.
O que exatamente aquela médica quis dizer com tal declaração? O que ela realmente espera das pessoas que procuram um profissional da saúde, eu disse profissional, aquele que passou anos estudando sobre as doenças e como curá-las? O que ela sabe sobre a dor e o sofrimento de cada um que espera, pacientemente, por uma palavra, um cuidado, uma forma de aliviar aquele sintoma que o fez interromper suas atividades sejam de trabalho ou de prazer, para enfrentar as lotadas salas de espera de um hospital público ou privado? O que ela sabe do outro?
Gostaria que a tal médica pudesse explicar como um paciente pode saber, por conta própria, se aquela terrível dor de cabeça é uma “simples” enxaqueca ou um derrame ocular?
Aconteceu com uma amiga que já estava “acostumada” com os sintomas da enxaqueca e que, num sábado á noite enquanto secava os cabelos ao abrir os olhos viu um borrão preto e tudo ficar pulando e mudando de tamanho e, conhecendo os sintomas da enxaqueca achou melhor passar o final de semana em casa “descansando”. Ela não sabia se aquilo era urgência ou emergência, muito menos a diferença entre os dois e fez a opção pelo ambulatório. Na segunda-feira quando foi ao médico descobriu que aquilo tinha sido um derrame ocular.
Aí eu pergunto como minha amiga poderia saber a gravidade do acontecido? Quais conhecimentos são necessários para que uma pessoa comum que nunca frequentou a faculdade de medicina possa reconhecer a diferença entre um derrame ocular e uma enxaqueca?
Minha irmã também teve uma forte dor de cabeça e, sem saber se aquilo era uma emergência, urgência ou caso de ambulatório procurou o hospital e descobriu que aquela dor de cabeça era resultado de um aneurisma isso, obviamente, depois de ter sido examinada por vários médicos e de ter feito várias radiografias, exames e ressonâncias magnéticas,
Se o aneurisma da minha irmã tivesse acontecido algumas horas depois da publicação das explicações bastante claras daquela doutora talvez ela soubesse que a dor na sua cabeça era uma emergência, que ela teria risco de morte ou de sequela permanente caso não fosse atendida naquele momento e, quem sabe, detentora de tal conhecimento poderia ter poupado os médicos do trabalho de fazer o diagnóstico, e chegaria na emergência com um pedido de auto internação! Mas minha irmã nunca estudou medicina e se tivesse estudado talvez pudesse até saber, mas, na hora da dor e do desespero, com certeza não teria condições de agir por conta própria e iria procurar ajuda na emergência de um hospital.
Infelizmente a médica “educadora” não está sozinha quando responsabiliza os pacientes pelo caos nos hospitais. Segundo o jornal os outros hospitais também justificaram a demora no atendimento da emergência atribuindo parte da responsabilidade aos pacientes de ambulatório que procuram a emergência. Não satisfeita com tal explicação “a direção dos hospitais também cita o crescimento da população do DF e o aumento da demanda por saúde tanto por parte de moradores daqui quanto de cidades vizinhas.”
Será que além da população não poder crescer também não pode adoecer? Será que os grandes responsáveis pela situação caótica dos hospitais tanto públicos quanto privados somos nós, pobres mortais que além de nos atrevermos a nascer ainda ousamos ficar doentes?
Os absurdos da saúde não param por aí. Na tentativa de diminuir a demanda, o Sistema transforma a pediatria numa especialidade de segunda categoria e pela baixa remuneração cuida de manter os estudantes de medicina longe das crianças. Eles preferem especialidades mais rentáveis, aquelas que exigem exames complementares e aumentam os ganhos tantos dos médicos quanto dos hospitais.
Quem sabe, sem os cuidados pediátricos, as criancinhas doentes venham a morrer por falta de atendimento diminuindo assim a demanda de futuros adultos que insistam em procurar as emergências dos hospitais ignorando a diferença entre emergência, urgência e ambulatório Talvez deste modo o sistema de saúde possa finalmente ter condições de atender os poucos pacientes sapientes que, cientes das causas do seu mal saberão qual serviço de saúde procurar.
Meu pai tinha razão, mesmo que se tenha vivido muito há sempre o que aprender.

Lurdinha Danezy

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Sobre preconceitos e preconceituosos

O Aurélio nos diz que preconceito é conceito ou opinião formados antecipadamente sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos.
Cavalcante (2004) na sua tese de mestrado ‘O preconceito da deficiência no processo de inclusão escolar' diz que “Quando se trata de preconceito, em uma perspectiva ética, não há meio termo, mais ou menos, ou seja, não há relativismo. Ou você tem ou você não tem abertura ao outro, ou você tem ou você não tem interesse em se relacionar com o outro, ou você tem ou você não tem compromisso com o outro. Assim acreditamos que o preconceito é o primado do eu.”.
Podemos pensar então que o preconceito pode ser um mecanismo adotado pelas pessoas para o não compromisso e a não responsabilização por esse outro?
Será que o preconceito pode ser visto como uma barreira para o não acolhimento do outro como ele é?
O preconceito existe em toda parte, alguns grupos sofrem mais preconceito que outros. A maioria das pessoas se intitula não preconceituosa.
Muitos de nós já sofremos preconceito em algum momento das nossas vidas, alguns sofrem preconceito todo o tempo. Todo mundo sabe disso, todo mundo finge que não é preconceituoso.
Pesquisa realizada em 501 escolas públicas de todo o país, baseada em entrevistas com mais de 18,5 mil alunos, pais, mães, diretores, professores e funcionários, revelou que 99,3% dessas pessoas demonstram algum tipo de preconceito etnorracial, socioeconômico, com relação a portadores de necessidades especiais, gênero, geração, orientação sexual ou territorial.
De acordo com a pesquisa 96,5% dos entrevistados têm preconceito com relação a portadores de necessidades especiais, 94,2% têm preconceito etnorracial, 93,5% de gênero, 91% de geração, 87,5% socioeconômico, 87,3% com relação à orientação sexual e 75,95% têm preconceito territorial. Ou seja, todo mundo tem preconceito com o outro que é diferente dele, então: o branco tem preconceito com o negro e o negro com o branco, o velho com o jovem e o jovem com o velho, o rico com o pobre e, é claro, o pobre com o rico, o homofóbico que não pode nem passar pela mesma calçada que um gay e um gay que detesta o homofóbico e tem um grande preconceito em relação a essa categoria tão preconceituosa. E a coisa continua... o homem tem preconceito com a mulher, o baiano com o mineiro, o gaúcho com o paulista, o atleticano com o cruzeirense, o “feio” com o “bonito”, o magro com o gordo e por aí vai...
Conclusão: Ninguém é bom o suficiente se não for um clone de si mesmo.
Parece que vemos o outro através do nosso umbigo e isso nos torna potencialmente seres preconceituosos já que na opinião da maioria de nós, eu sou bonito, o outro não, eu sou inteligente o outro não, eu faço as coisas certas o outro faz errado, eu tenho bom gosto o outro é cafona, eu ouço música o outro só escuta porcaria, eu não tenho preconceito quem tem é o outro.
Será que lutar contra o preconceito é uma grande perda de tempo? Considerando que 99,3% é praticamente toda a população, o que fazer diante desta cruel realidade?
Quanto maior a diferença e quanto menor o grupo, maior o preconceito. Os deficientes mentais, por exemplo, segundo a pesquisa, são os mais discriminados, 98,9% das pessoas querem distância de “criaturas tão incapazes, esteticamente estranhas” e que só vieram para atrapalhar o bom andamento de grupos sociais que, mesmo formados por brancos, negros, magros, gordos, velhos, jovens, deficientes, gays e tantos outros, se livraram de diagnóstico tão nefasto, “livres” aprenderam a conviver uns com os outros e, colocando seus preconceitos no bolso fingem que se respeitam.
O mais preocupante é que a pesquisa foi feita no ambiente escolar e, considerando que a escola é o lugar onde crianças, com ou sem deficiência, passam a maior parte do tempo e é o local onde eles aprendem ou deveriam aprender a viver em sociedade, bate um desespero e a pergunta torna-se inevitável. O preconceito tem conserto?
Não é na escola que crianças e jovens deveriam aprender? Não é na escola que, além dos conteúdos obrigatórios e cada dia mais inúteis, as crianças deveriam aprender a convivência, a ética, a cidadania, a solidariedade e o respeito á diversidade?
Se o ambiente formalmente responsável pela educação não é capaz de formar as crianças que deveriam ser cidadãos menos preconceituosos, como acabar com o preconceito, como ensinar o respeito ao outro? Quem vai ensinar?
Pais e mães que precisam passar o dia trabalhando, entregam a educação de seus filhos para terceiros, no caso os educadores que, conforme a pesquisa, também estão incluídos na estatística dos preconceituosos.
Pais e escola alegam que a responsabilidade é do outro e, isentos de culpa, seguem ilesos na sua cotidiana vida de preconceitos disfarçados.
Como ensinar? Quem vai ensinar?
Enquanto ninguém assume este papel, o governo nos presenteia com estatísticas que nos deixam ainda mais inseguros diante do futuro. E, se considerarmos que o futuro é um devir, o momento de agir é agora.
Somos os responsáveis pelas próximas gerações e pelo mundo onde vamos viver a nossa velhice.
O que nós estamos fazendo pelo futuro da humanidade?
O que estamos fazendo por nós?
Onde estão os 0,7% da população, aqueles que não entraram na pesquisa como preconceituosos? Será que os 0,7% são formados pela grande minoria de pessoas conscientes que respeitam a diversidade?
O que eles estão fazendo, de fato, para mudar esta realidade?
Enquanto as resposta não vêm... Vamos vivendo o nosso cotidiano mudando de calçada e virando o rosto para não ver o outro?